Assessoria de Comunicação da AASPSI Brasil acompanhou evento que integrou a 11a Semana Justiça
pela Paz em Casa

“Para que uma violência que hoje é menos grave não se torne um feminicídio no futuro”, este foi o foco da palestra “Da violência doméstica ao feminicídio: Os caminhos da prevenção”, organizado pela Vara Central de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Tribunal de Justiça de São Paulo com o apoio do Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi) , no último dia 24 de agosto. O evento integrou a 11a Semana Justiça Pela Paz em Casa.
Como fortalecer, que cuidados a mulher deve ter para se fortalecer diante das assustadoras estatísticas que tomam os noticiários diariamente, foi uma das questões debatidas pelas convidadas: Suelaine Carneiro, socióloga e vice-presidente do Geledés Instituto da Mulher Negra e Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, advogada de direitos humanos e questões de gênero e presidente do Geledés. A coordenadora do USP Mulheres/ONU, a socióloga Eva Alterman Blay também foi convidada a participar dos debates, mas por problemas de saúde não pode comparecer.
A legislação mudou bastante nos últimos anos, especialmente com o advento da Lei Maria da Penha há 12 anos e a alteração do artigo 121 do Código Penal para inclusão do feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, no entanto, ainda temos um longo caminho a trilhar no que tange à violência de gênero. Esta não é apenas uma questão de legislação, a lei por si só não garante a proteção às mulheres em risco, a questão é também sociocultural, o que demanda envolvimento e empenho de todos. Vivemos ainda em uma sociedade machista e patriarcal, na qual as mulheres ainda se veem com papel secundário e, muitas vezes, quando tentam exercer seu protagonismo são brutalmente caladas e algumas acabam mortas por seus companheiros.
“A tipificação penal do feminicídio pode não ser suficiente porque ainda subsiste um controle patriarcal e opressão contra a mulher, mas é essencial dar visibilidade aos assassinatos de mulheres ao invés de trata-los como crimes passionais”, defendeu a juíza Elaine Cristina Monteiro Cavalcante. Ela também acredita ser necessária maior conscientização dos operadores do Direito sobre esta questão. “Precisamos compreender que o feminicídio é uma violência de gênero”.
A violência e a mulher negra
A violência doméstica ocorre com mulheres de diversas faixas etárias e classe social, mas torna-se ainda mais cruel quando vem associada ao racismo, fazendo das mulheres negras potenciais vitimas da violência. Essa é a constatação trazida por Suelaine, baseada na pesquisa “Mulheres negras e violência doméstica: decodificando os números, realizada pelo Instituto Geledés em 2016. Mais do que revelar a participação das mulheres negras na violência doméstica, a pesquisa mostrou o desafio das políticas públicas para reverter esta situação e fazer com que todas as mulheres sejam atendidas. “Acredito que o principal desafio no momento é o de como caminharemos para a prevenção com o desmonte da política pública de enfrentamento à violência contra as mulheres?”, questionou. Os dados neste quesito são desanimadores: Em 2014 a verba destinada para as políticas com o objetivo de promover a autonomia e o combate à violência era de cerca de R$ 147 milhões. Em 2018 foi de cerda de R$ 24 milhões, um corte de 83% no orçamento federal. Entre 2014 e 2017, aproximadamente 164 serviços especializados, como abrigos, centros de atendimento, delegacias e varas foram fechados.
Falando sobre a realidade da capital paulista, a socióloga apontou que o atendimento a mulheres vitimas de violência doméstica aumentou 31% nos centros de defesa e convivência no primeiro trimestre de 2017. Mesmo assim, a prefeitura cortou R$ 3 milhões da verba repassada para o funcionamento dos espaços. Nos primeiros meses de 2016, 9.228 mulheres buscaram ajuda nos Centros de Defesa e de Convivência da Mulher. Em 2017, no mesmo período, foram 12.138 atendimentos.
A pesquisa realizada em 2016 entrevistou mulheres de 25 a 62 anos. A maioria delas tinha o ensino fundamental incompleto e eram oriundas de famílias de baixa renda e em situação de vulnerabilidade. As mulheres negras são as que mais denunciam e também as principais vitimas. As condições socioeconômicas (local de moradia, família, trabalho e renda e acesso à informação) são preponderantes para este quadro. Estas mulheres são o elo mais fraco da violência urbana que assola as periferias e favelas.
A falta de investimentos é um entrave para o enfrentamento à violência doméstica, mas não é o único. A educação é uma arma potente para o fortalecimento das mulheres e de prevenção ao feminicídio, no entanto em um país marcado pelo machismo, pelo preconceito, pelo racismo e pela exploração como o Brasil, a educação universal e inclusiva é ainda uma utopia, situação esta agravada com a aprovação pelo Congresso Nacional da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que congela os investimentos sociais por 20 anos. “Profissionais da educação que abordam gênero, raça e sexualidade são perseguidos e criminalizados”, denunciou Suelaine. Desconstruir as concepções de masculino e feminino, as hierarquias sociais e raciais e buscar a igualdade de oportunidades para homens e mulheres é um desafio a longo prazo, uma jornada, na qual a nova legislação foi apenas os primeiros passos.
Juntas contra a violência
Maria Sylvia falou sobre a importância do advento da tecnologia no apoio à prevenção e atendimento às mulheres vitimas de violência doméstica. O primeiro aplicativo de celular criado com este fim – o PLP 2.0 – era público e integrava a mulher com medida protetiva à Secretaria de Segurança Pública e à Polícia Militar por geoposicionamento. “Esta tecnologia está em funcionamento hoje no Rio Grande do Sul porque no momento de sua implantação existia um ambiente institucional mais favorável para a adoção desta política pública”, expôs. Em outros estados a implantação não prosperou.
Deste modo, nasceu o “Juntas”, outro aplicativo semelhante ao PLP 2.0. Trata-se de uma ferramenta social, disponível à qualquer mulher que queira utilizá-lo, independente de possuir ou não a medida protetiva. Pelo aplicativo, a mulher em perigo aciona por mensagem pessoas previamente cadastradas que receberão a sua localização. É uma rede pessoal de proteção. Além dos números cadastrados, o aplicativo aciona diretamente as redes de atendimento das Promotoras Legais Populares – lideranças comunitárias femininas capacitadas em noções básicas de leis e direitos humanos que atuam na defesa, orientação e triagem de demandas e na prevenção da violência contra a mulher.
A advogada também avalia como positiva a mudança recente da legislação em defesa da mulher. “Penso que um grande ganho da Lei Maria da Penha, apesar de todas as suas deficiência, é que trouxe para a esfera pública o debate da violência doméstica”, disse. “Ainda que muitas pessoas, por diversas razões, ainda não conheçam profundamente a lei, as pesquisas mostram que 95% da população sabem da existência da lei.”
Filha da violência
Quem esteve no evento pode assistir ao documentário “Filha da violência”, que conta a história da jovem Amanda Carvalho, que cresceu convivendo com as brigas dos pais e assistindo a violência do pai contra a mãe. Até que um dia seu pai ateou fogo na mãe e na filha. Com 57% do corpo queimado e órfã de mãe, a jovem convive diariamente com as marcas da violência doméstica. As cicatrizes são a triste lembrança do feminicídio que Amanda presenciou.
Impossível não se emocionar com o relato da jovem, que na época tinha 17 anos. Triste pensar que a história de Amanda é apenas uma entre tantas outras no Brasil. Quantos filhos perderam suas mães vitimas de feminicídio? Até quando vamos tratar como natural a violência doméstica?
Suelaine resumiu qual foi o propósito do encontro e de todos que lá se encontravam: “Nosso compromisso é o de que as próximas gerações não tenham que passar por isso. Que nossas filhas, nossas netas não precisem passar por isso. Que a gente consiga construir outra sociedade.”