Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”.
Em “A verdade dividida”, de 1984, Drummond faz poesia a partir de uma constatação filosófica implacável: aquilo que chamamos de “verdade”, a depender de quem a anuncia, de quem a escuta, de quem a escolhe, de quem a analisa, e de quem a defende, será nada mais do que uma versão dos fatos. Em maior ou menor grau, isso implica na inacessibilidade da realidade em sua totalidade, até o ponto de nos aproximarmos ao axioma nietzschiano de que a verdade é composta de ilusões que, de tanto repetidas, se esquecem enquanto tais.
Apesar disso, as ciências jurídicas e as demais que as auxiliam, para funcionarem, guardam a premissa de que há uma “verdade real”, que, se tudo correr bem, poderá ser revelada no curso de um processo judicial, mediante a reconstrução de uma realidade com a reunião de provas e procedimentos. A partir dessa reconstrução, a autoridade legal constituída para o julgamento atribuirá responsabilidades individuais e aplicará as medidas pertinentes.
E em meio a essa breve explanação, convém adicionar mais um aspecto sobre a “verdade”: ela também depende do meio utilizado para ser “descoberta” e do sujeito que formula o conhecimento a respeito dela. É o que Foucault sempre denunciou sobre as práticas judiciárias: para ele, a verdade se forma de estruturas políticas que são constitutivas do próprio sujeito que formula o conhecimento a respeito dela. Dito de outro modo: as formas jurídicas constroem as suas verdades e usam das ciências para legitimar essas verdades porquanto as apoia em dados de realidade.
Dito isso, hora de problematizar a novíssima promessa de verificação de fatos relativos a vitimização infanto-juvenil entregue pelos nossos legisladores ao Sistema de Justiça: o chamado “Depoimento Especial” (DE), que é a estrutura de apresentação de crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de crimes (sobretudo abuso sexual), perante juiz, promotor, advogados etc., com o pretenso objetivo de que sejam ouvidos sobre o que sabem ou vivenciaram, de forma a não expô-los a novos danos decorrentes do ambiente hostil do Sistema de Justiça, conhecido por sua frieza, formalidade e distanciamento da população em geral. A ideia soa convincente: extrair verdades de crianças e adolescentes sem danificá-los.
No centro da proposta estão agentes estranhos ao ato jurídico do depoimento: psicólogos e assistentes sociais. Ainda que a lei não preveja expressamente essas categorias, todos os marcos de criação e desenvolvimento desse procedimento atribuem a esses profissionais o papel de, no lugar do juiz, mas conectado a ele remotamente, inquirir crianças e adolescentes. O depoimento, assim, ficará gravado e poderá ser revisto por todas as instâncias julgadoras sem a necessidade de novos depoimentos, sempre desgastantes e emocionalmente abusivos. Como é bem sabido, evocar memórias de eventos traumáticos costuma ser tão desgastante emocionalmente quanto o próprio trauma em si, principalmente quando o agressor é pessoa próxima da criança (não, os pedófilos não atacam em museus).
E aqui está um problema de ordem ética: para se extrair determinada fala acusatória da criança, todo o conhecimento da Psicologia e do Serviço Social será utilizado para instrumentalizar o depoimento, mas não para atividades dessas profissões. Na verdade, não só o conhecimento, mas o próprio profissional em si é usado, na medida em que, do ponto de vista infantil, ele dublará o juiz. Está montada então uma teatrologia: a pretexto de uma proteção, oculta-se a verdade do julgamento na sala ao lado, enquanto se apresenta à criança um agente supostamente mais sensível e preparado para dialogar com ela.
Teatrologia porque psicólogos e assistentes sociais não colhem depoimentos. Em vez disso, produzem conhecimento sobre indivíduos, grupos e sociedade, através de procedimentos de análise técnica, e não jurídica, que são apresentados na forma de laudos, relatórios e pareceres, e não em termo de declarações ou de audiências.
Teatrologia porque o julgamento fica praticamente oculto. Ainda que se diga à criança e ao adolescente que o juiz tudo ouve e tudo vê, quem irá dizer que a figura do técnico psicólogo ou assistente social não será determinante para que se obtenha uma relação totalmente outra?Escutar é estar em relação e, na hipótese do DE, o juiz não se aproxima da criança de forma alguma.
Desde que esse procedimento foi proposto no Brasil há 10 anos e até ser incorporado ao Estatuto da Criança e do Adolescente, muito se discutiu a respeito de suas supostas vantagens, e todas elas foram controvertidas: falou-se que o DE atendia o direito de crianças e adolescentes de participar de atos que lhes interessam, muito embora também tenha sido discutido sobre a capacidade jurídica da criança e do adolescente de se responsabilizar pelas consequências do que diz perante uma autoridade em função decisória; falou-se que o DE evita a revitimização da criança pelo número limitado de depoimentos, mas também foi apontado que o depoimento produz provas e não encaminhamentos e reflexões sobre a problemática sócio-sexual da família abusiva; falou-se que o DE aumenta o número de condenações num tema como abuso sexual infantil, conhecido por contar com poucas evidências materiais, apesar de se ter discutido que a criança tem mais interesse na interrupção da violência do que na condenação propriamente dita; falou-se que o DE, ao valorizar a fala da criança, conferiu-lhe protagonismo no Sistema de Justiça, apesar de se ter discutido que, para a criança, o papel de vítima fica gravado para sempre perante as mídias do processo, podendo ele nunca ser reformulado; falou-se que o DE supre uma deficiência do Sistema de Justiça na instrução processual por conta de laudos técnicos de baixa qualidade, enquanto por outro lado se apontou que o processo avaliativo é mais protetivo e transformador do que penal e verificador, sendo essa “baixa qualidade” uma questão de referencial; falou-se que o DE atende a diversas características da fala infantil que o operador do direito raramente compreende, mas por outro lado se destacou que o DE não respeita o tempo da criança traumatizada, seu direito ao silêncio, o valor e os significados do não-dito.
Enfim, nada do DE passou sem que os contrapontos fossem invalidados. Fizeram (fazem?) uma escolha política de que a lógica extrativa do DE servirá à uma imaginada proteção. E nesse processo legislativo de formulação do DE, todos esses contrapontos, apresentados por entidades e grupos da sociedade civil, foram ignorados ou desconsiderados solenemente. Até mesmo as resoluções dos Conselhos Federais de Psicologia e do Serviço Social, que proibiam a inquirição e não reconheciam a prática enquanto ação profissional daquelas categorias, foram suspensas judicialmente, como se esses órgãos, que têm legitimidade para governar as respectivas profissões, não pudessem disciplinar a profissão e os limites éticos de seu exercício.
Ou seja, para instituir uma sistemática que serve para OUVIR o outro e sua dor, nossos legisladores e órgãos do Poder Judiciário fizeram nada menos que CALAR as vozes dos que por ele falam e dos que melhor o enxergam. Que sintomático! E não é estranho que aquilo que é feito para proteger direitos precise suprimir normas e ignorar a ética profissional alheia?
O DE não é uma atividade de interdisciplinaridade, que respeita as áreas fronteiriças do âmbito sociojurídico. É, isto sim, um ato de dominação do direito sobre o psicossocial, uma questão de obediência, e não de troca de conhecimentos.
Psicologia e Serviço Social são as únicas lentes do processo judicial que subjetivam a história e os conflitos humanos dos que acorrem ao Judiciário ou que a ele foram encaminhados. Tamponar essas profissões limitará os processos judiciais a discussões que escamoteiam a dor e o mal-estar dos conflitos humanos sob uma parafernália jurídica e a lógicas discursivas artificiais, ainda mais com o uso de tecnologias extrativas de “verdades”.
Em vez de mecanizar o conhecimento e o fazer psicossocial, deveriam os juízes, promotores, defensores públicos e advogados aprenderem a escutar crianças e adolescentes, a dialogar com eles. Escutar o outro não é um ato psicossocial; é um ato de humanos.
Carlos Renato Nakamura, psicólogo judiciário do TJ-SP